quinta-feira, 10 de agosto de 2017

O governo quer mudar a atenção básica a saúde. Quais os efeitos?

Uma unidade básica de saúde. O governo vai reformular a Política Nacional de Atenção Básica - e pode tirar incentivos do programa Saúde da Família (Foto: Rogério Cassimiro/ ÉPOCA)
Uma unidade básica de saúde. O governo vai reformular
a Política Nacional de Atenção Básica – e pode tirar incentivos
 do programa Saúde da Família (Foto: Rogério Cassimiro/ ÉPOCA)
Fonte: http://epoca.globo.com

Em 2010, a prestigiosa revista científica britânica BMJ dedicou um de seus editoriais ao sistema de saúde brasileiro. O tom era elogioso. Ainda que reconhecesse problemas, a revista destacava a capacidade brasileira de, desde a criação do SUS, em 1988, universalizar o acesso à saúde e, com isso, melhorar indicadores importantes: como a mortalidade infantil (que caiu) e as taxas de vacinação (que cresceram). Chegava mesmo a uma conclusão ousada: "Os gestores britânicos têm o hábito de buscar nos EUA exemplos inovadores de cuidados em saúde", dizia a revista. "Talvez eles devessem olhar para o Brasil." Para a BMJ, o Brasil "acerta em muitos pontos". Um desses acertos, dizia a revista, tinha sido a criação da Estratégia Saúde da Família (ESF).

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O programa Saúde da Família foi criado em 1994 e, em 1998, foi alçado à principal estratégia do governo brasileiro para ampliar e consolidar a atenção básica no país. A atenção básica é aquela que se encarrega da complexa missão de acompanhar a pessoa durante a saúde, de modo a evitar que doenças surjam ou se agravem.Funciona como a porta de entrada do sistema de saúde. A ideia do Saúde da Família era facilitar o acesso a esses cuidados. O programa divide a população do município em grupos, chamados territórios. E cada território passa a contar com uma equipe de profissionais formada por médico de família, enfermeiros e agentes de saúde - agentes que fazem visitas domiciliares para orientar a população sobre consultas, uso de remédios, prevençãos de doenças, dentre uma infinidade de outras questões. Idealmente, esse pessoal deve conhecer as condições de vida daquela população, para pensar maneiras de melhorar os cuidados que essas pessoas recebem. Maneiras de garantir que sejam mais saudáveis.
















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O ESF respresentou um avanço em relação ao modelo tradicional de atenção básica oferecido no Brasil até o começo dos anos 1990 (e que persiste em alguns municípios), em que a população visita uma Unidade Básica de Saúde (as UBS) para se consultar com um médico, sem garantia de acompanhamento próximo e constante. O Saúde da Família também emula experiências semelhantes já testadas no Canadá e no Reino Unido – dois países elogiados por seus sistemas de saúde exemplares. E que surtiram bons efeitos por lá. Desde 1994, o Saúde da Família se expandiu a ponto de, hoje, alcançar 64% da população brasileira. O sucesso foi, em parte, reflexo da posição de protagonista ocupada pelo programa, considerado uma estratégia prioritária para a atenção básica. Como é prioridade, ele garante repasses federais adicionais aos municípios que o implantam.

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Mas isso pode estar perto do fim. O Ministério da Saúde discute mudar a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB). É ela que reúne as diretrizes que orientam as ações dos governos federal, estaduais e municipais nessa seara. O novo texto, que esteve aberto a consulta pública até o último domingo (6), reconhece a existência de outros modelos da atenção básica, além do Saúde da Família - inclusive o modelo tradicional. Modelos que, caso a proposta seja aprovada, poderão receber financiamento federal, competindo com o ESF na disputa por recursos. “Num contexto de corte de gastos, como o que a gente vive no Brasil, isso pode significar menos investimento para uma estratégia que já se mostrou eficiente”, diz a professora Ligia Giovanella, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

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A proposta do governo preocupa mais pelo que deixa de dizer do que por aquilo que expressa em suas pouco mais de 40 páginas. “Em muitos trechos, ela é enfática ao dizer que o Saúde da Família continua sendo a estratégia prioritária”, diz Thiago Trindade, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina da Família e Comunidade (SBMFC). “Mas não explica como vai manter essa prioridade, agora que vai reconhecer outros modelos.” As mudanças, e a falta de definição do texto, preocuparam entidades de saúde. Em uma nota, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) criticou a proposta: “Embora a minuta da PNAB afirme a Saúde da Família ser estratégia prioritária para expansão e consolidação da Atenção Básica, o texto na prática rompe com sua centralidade na organização do SUS, instituindo financiamento específico para quaisquer outros modelos na atenção básica (para além daquelas populações específicas já definidas na atual PNAB como ribeirinhas, população de rua) que não contemplam a composição de equipes multiprofissionais com a presença de agentes comunitários de saúde”.

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Em uma entrevista coletiva na manhã desta quinta-feira (10) oministro da Saúde, Ricardo Barros, afirmou que, ao estimular outros modelos de atenção básica, o governo quer passar a financiar "o mundo real": "Essa flexibilização na PNAB permite financiar formas de atendimento que já existem em diversos municípios brasileiro", disse o ministro. "Sao equipes e serviços que não estão no padrão estabelecido pelo Saúde da Família. Vamos passar a financiar o mundo real".

A proposta da nova política foi discutida em uma reunião do Conselho Nacional de Saúde na quarta-feira (9). Dali, segue para ser debatida na Comissão Intergestores Tripartite, um grupo que reúne representantes de gestores da saúde das esferas federal, estadual e municipal. Além dos possíveis desdobramentos para o Saúde da Família, outras duas mudanças chamam a atenção no novo texto da PNAB. Uma diz respeito ao trabalho dos agentes de saúde e dos agentes de controle de endemias. Outra estabelece uma carteira de serviços essenciais que deverão ser oferecidos pela atenção básica em todo o país. A seguir, ÉPOCA avalia o impacto dessas novidades.

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Para entender as possíveis mudanças, é importante entender como a atenção básica é financiada no Brasil. O financiamento do sistema de saúde é responsabilidade de todas as esferas de governo: federal, estadual e municipal. Para sustentar a atenção básica, o governo federal transfere aos municípios um valor fixo preestabelecido, determinado pelo tamanho da população: "É um valor baixo, R$ 24 por habitante por ano", diz Lígia. É esse o Piso da Atenção Básica (PAB) fixo. Os municípios ainda podem receber repasses adicionais, desde que implantem equipes de Saúde da Família: é o PAB variável,cujo valor mais baixo gira em torno de R$ 7 mil a cada equipe de Saúde da Família existente do município. Esses recursos adicionais funcionam como um mecanismo de indução: por meio dele, o governo tenta estimular as prefeituras a aderir a um programa que, comprovadamente, traz resultados.

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Nos municípios em que foi implantado, o Saúde da Família foi acompanhado por melhoras nos indicadores de saúde da população: "Já se provou que essa estratégia promove equidade", diz Luiz Facchini, professor da Universidade de Pelotas e coordenador da Rede de Pesquisa em Atenção Primária da Abrasco. "Os indicadores das áreas mais pobres se aproximam daqueles verificados em áreas mais ricas, quando há implantação do ESF". Ao Saúde da Família, por exemplo, é creditada a redução no número de internações feitas para tratar doenças que poderiam ser evitadas por meio de estratégias de prevenção. É o controle da hipertensão que evita uma internação depois de um infarto, por exemplo. Esse benefício do programa foi percebido em municípios brasileiros de todos os portes.

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Apesar de ser a estratégia prioritária, o ESF não é o único modelo de atenção básica em funcionamento no país. Segundo o Ministério da Saúde, cerca de 10% dos brasileiros são atendidos por modelos alternativos. A proposta da nova PNAB reconhece esses modelos. A novidade é que ela propõe que essas equipes passem, também, a receber financiamento federal adicional. "O que o novo texto propõe é estimular esses modelos alternativos", diz Marcelo Demarzo, professor do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Isso é positivo porque permite pensar formas de alcançar populações para as quais o Saúde da Família não é o melhor programa.” Alguns críticos afirmam que o Saúde da Família não é o modelo mais adequado para todas as parcelas da população: "Ele funciona mal com a classe média, que tem baixa adesão ao programa", diz Demarzo. "E tem piores resultados nos grandes centros urbanos, nas capitais mais ricas." O impacto do ESF na queda de internações por condições sensíveis à atenção básica é menor, de fato, nas cidades com mais de 1 milhão de habitantes.

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A mudança pode se mostrar positiva. Mas há o temor de que, em lugar de incentivar a busca por formas mais eficientes de cuidar da população, o texto provoque retrocesso: “Antes da criação do Saúde da Família, já havia equipes de atenção básica em funcionamento no país. Mas elas seguiam outra lógica”, diz a professora Lígia Giovanella. Eram equipes que não incluíam agentes de saúde e cujos profissionais tinham cargas horários menores. Equipes que não tinham condições de conhecer como viviam os pacientes de que cuidavam – para tratar deles de maneira integral. É o "mundo real" de que fala o ministro Ricardo Barros. “Ainda há equipes desse gênero no país. Elas são mais baratas. E são essas equipes tradicionais que vão ganhar fôlego com a nova política”, diz Lígia.

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O texto também deixa no ar algumas indefinições. A proposta afirma que o ESF permanece como estratégia prioritária. Mas não esclarece que tipo de estímulo o programa vai receber de modo a diferenciá-la dos demais modelos. “O financiamento diferenciado era o mecanismo de indução, e ele desapareceu”, diz Trindade, da SBMFC. “Dizer que a ESF continua prioritária não basta. É preciso dizer como ela será estimulada.”
O que muda no trabalho dos agentes de saúde e dos agentes de controle de endemias

A nova PNAB altera também a forma como são organizados os trabalhos desses dois profissionais. Há semelhanças entre eles – ambos lidam diretamente com a população, visitando casas e orientando sobre como prevenir doenças. A proposta do governo, agora, é incluir os agentes de controle de endemias nas equipes da atenção básica, de modo que trabalhem sob uma mesma coordenação. É uma novidade – na última versão da política, de 2011, o termo “controle de endemias” nem sequer aparece. A ideia do governo, ao fazer isso, é estimular que o trabalho desses dois tipos de agentes seja feito de maneira integrada.

Os agentes comunitários de saúde fazem parte das equipes de atenção básica desde o início dos anos 1990. Tradicionalmente, eles são moradores das comunidades onde trabalham. A ideia é que sejam capazes de fazer uma ponte entre a população e o sistema de saúde. Cada agente de saúde é responsável por um território do município e pelas pessoas que vivem nele. Cabe a esses agentes visitar as casas periodicamente, para orientar sobre o comparecimento a consultas médicas, o uso de remédios e campanhas de vacinação, entre uma infinidade de outras responsabilidades. São atividades que têm impacto importante para a saúde da população. No final do ano passado, ÉPOCA acompanhou o trabalho desses agentes na cidade de Américo Brasiliense, no interior de São Paulo. Américo é um típica cidade pequena, que arrecada poucos impostos e tem recursos limitados para investir em saúde. Por lá, o trabalho desses agentes foi essencial para manter saudáveis pessoas como Alfredo de Oliveira – um senhor de 79 anos que sofreu três acidentes vasculares antes de a agente de saúde Aparecida Lima da Silva ensiná-lo a tomar, nos horários certos, os remédios que mantém sob controle sua hipertensão.


Esse modelo de trabalho, se a nova PNAB for aprovada, deve ser incorporado pelos agentes de controle de endemias. São eles os responsáveis por visitar as casas em busca de focos do mosquito da dengue, por exemplo. A proposta é que atuem nos mesmos territórios que os agentes de saúde e se responsabilizem pelas famílias que morem ali. Façam visitas periódicas e orientem a população sobre como evitar a proliferação de animais causadores de doenças. A princípio, é uma mudança boa: “Os dois agentes fazem um trabalho de vigilância em saúde”, diz Marcelo Demarzo, da Unifesp. “Agora, esses trabalhos serão articulados e organizados.”

Mas a proposta ainda esconde um possível problema. Ao reconhecer, e estimular, outros modelos de atenção básica que não o Saúde da Família, o texto dá fôlego a alternativas que não contemplam o trabalho dos agentes de saúde. “Se a proposta for aprovada, essa será uma categoria em extinção”, diz Facchini, da Abrasco.
Relação de ações e serviços essenciais . O que é isso?

A ideia, em princípio, é boa. Trata-se da criação de uma relação de serviços que devem ser oferecidos pela atenção básica em todo o país. É um esforço de padronização, já testado em algumas capitais brasileiras: “Esse modelo, de carteira de serviços, já funciona bem Curitiba e em Florianópolis”, diz Thiago Trindade, da Sociedade de Medicina da Família e Comunidade. Ele permite ao cidadão saber que pode frequentar qualquer Unidade Básica de Saúde (UBS) de sua cidade e ter acesso ao mesmo tipo de atendimento, aos mesmos tipos de exames. Também ajuda a definir qual a estrutura necessária para que médicos e enfermeiros trabalhem bem: “Há casos em que certos procedimentos não são realizados porque a UBS não tem estrutura”, diz Luiz Facchini. A criação de uma relação nacional pode evitar problemas como esses.

Mas o texto da proposta contém ainda um detalhe que preocupa. Ele fala na criação de duas listas. Uma, de serviços essenciais – aqueles que não podem faltar. Outra, de “padrões ampliados” – com serviços mais sofisticados. O detalhe preocupa porque pode servir de pretexto para que os municípios ofereçam somente os serviços mais básicos: “E a lista mínima se torne, na prática, a lista máxima”, diz Lígia Giovanelli, da Fiocruz. As duas relações ainda não foram elaboradas e devem ser discutidas no futuro. Mas o que as entidades médicas argumentam é que essa divisão em duas listas é desnecessária e potencialmente danosa: “O melhor seria a criação de uma lista ampla de serviços”, diz Facchini. “Que garantisse ao cidadão saúde de qualidade.”

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